sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Do que se enxerga

Quem me olha
do outro lado
do espelho
não sustenta
a minha dúvida:

O que o (eu) reflexo
faz enquanto me espera
voltar a encará-lo?

Será que fica
no espelho do banheiro
observando a parede
se desintegrar
no sangue invisível
do tempo?

O meu reflexo
não sabe
mas é mais feliz
(que eu)
em outro lugar
que não seja espelho

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

A morte e o caminho ao nada

A morte estava ali e não pude escapar. Sufocado pelo acaso, a morte colocou a aliança da inexistência em minha mão e comecei a repaginar as memórias sufocadas que sopravam nas janelas naquele momento. Enquanto a consciência ainda se fazia presente, comecei a repassar com pressa as cores-pessoas que tive a oportunidade de ver.

Lembrei que na primeira série a minha professora elogiou a pintura de um urso, onde realmente me empenhei muito com um giz de cera da cor laranja. Impus bastante força nos dedos, minha vontade era a de que o urso realmente saísse do papel, onde estava petrificado em preto e branco. Talvez a vida não seja menos que isso, escolher a cor com que iremos pintar o desenho que se oferta diariamente, sempre igual, sempre diferente.

Um breu interrompe a minha tentativa de relembrar as coisas que valeram a pena na vida. Sinto que meu corpo quer desligar, mas ainda resisto. Ainda na infância, lembro do sol que eu tentava olhar, mas nunca conseguia. Eu buscava fixar sua forma redonda, como nos é ensinado, mas não conseguia encará-lo. Via aquela mancha de luzes por no máximo três segundos e desistia enxugando as lágrimas forçadas com a visão dilatada. Encarar o sol é como encarar a morte, não enxergamos sua face e somos impotentes às lâminas que nos cegam.

Minhas pernas já não sinto mais e um estranho chiado em minha mente começa a ter um som agudo cada vez maior. Um solavanco na minha cabeça embaralha todas as informações e os sonhos já não se diferenciam do que foi real. Me perco no labirinto de imagens que formaram minha vida. Sinto uma arfada em minha boca, um objeto ultrapassa minha garganta e começa a cuspir fortes borrifadas de ar.

A vida foi demais para terminar assim. A vida foi demais para terminar aqui. A vida foi demais pra se desprender de mim. A vida é o que faz meu corpo doer assim. A vida pode mais do que me exterminar assim. A vida cabe mais do que esse escuro sem fim. A vida é sempre mais do que esse cobertor de terra sobre mim.     

Eu não queria ir e o instante que me precede é sempre mistério. Toda falta é incalculável e o que vem depois é só saudade. 

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Quem foi, volta

Ele chegou de uma viagem como quem fosse fazer visita, ainda que a casa fosse sua. Amparado por um chapéu cinza, a faixa se fazia enxergar no cabelo e face suados.

Ele chegou como quem já não está mais aqui. Foi recebido por um beijo no rosto pelo seu amor e se queixou de dores na cabeça.

Ele chegou de mochila suja, os olhos não tão atentos de quando estava vivo. Ao me perceber acima de sua cabeça, repetiu a queixa de dor de cabeça.

Ele chegou com olhos de quem não quis partir e na verdade a sua dor não era bem na cabeça, mas sim uma dor outra. A dor de não poder pertencer ao seu lugar, é o que pareceu.

Ele chegou querendo ficar e para ter certeza que não estamos tristes, visitou o meu sonho pra me confortar.


Ele partiu pra dentro da casa de onde nunca vai sair, certo que para vê-lo, basta querer sonhar. 

terça-feira, 6 de maio de 2014

Lentamente

Quantos abraços
cabem
no espaço
que nos separa?

Por querer ficar
sempre um pouco mais
me faço uma planta
que
com paciência
cresce no jardim
em frente à sua
janela

E sem que você perceba
me tornarei uma paisagem
sempre possível
onde seus olhos poderão
repousar

quarta-feira, 2 de abril de 2014

o amor refletido

Tão sublime é o amor
Complexa é a forma
como ele se alimenta

Pode o amor ser aquilo
que desejo
mas não posso dar em troca?

Amar é
mapear o próprio labirinto
nos caminhos ditos
pela boca de quem se ama.

É não querer trocar
a vertigem do abismo
que nos convoca ao mergulho
onde sou e estou no outro.

Amar é não temer
que o espelho dos olhos
se quebre em mil diamantes refletidos
ao pântano deixado
nos passos de quem
(de repente)
decide partir.

Terra distante

A ilha é
um pedaço de terra
que Deus quis manter
pura

Presa na solidão
da água
vê sempre o mesmo
horizonte

O verde da água
e o azul do sal
consomem seu corpo
(de terra)

De longe
vê barcos levando
homens
que acreditam se mover
sem ir a lugar algum

quinta-feira, 13 de março de 2014

Os galos no quintal de Gullar

Os galos
no quintal
de Gullar
comem o milho
plantado na roça
do poema.

A palavra escorre
no olhar duro
e frio
de um galo
que precisa declamar
o poema
de única sílaba.

O branco que antecede o poema

A palavra
aterrissou
na paisagem
(branca)
do papel

Solitária
percebeu a
infinidade fértil
do terreno

Como num parto
a caneta abre
na carne do papel
palavra
por
palavra
para constituir
um sentido
ao pensamento
(torto)
do poeta


entre o beijo
e a plataforma
um
a
   b
      i
        s
           m
                o

Pessoas no metrô
esperam
temerosas
pela porta
 automática
que só abrirá
na estação
errada

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Quando sou orvalho

Estou ali
caindo
em infinitas
gotas
no telhado

quando chovo
determino
que a primavera
floresça
nos campos
(mesmo que nas
brechas escuras
do cimento)

A ordem é que
a fruta do amor
amadureça no
coração do homem
ao canto
do primeiro
pássaro
da manhã

domingo, 26 de janeiro de 2014

Trovão

O trovão cala a
voz
de todos

É um aceno
(aceso
com a luz do raio)
sonoro
e inevitável

No trovão
Deus nos
avisa:

o céu
também
é
caos

sábado, 11 de janeiro de 2014

a flecha
do tempo

disparada pelo
anjo

alvejou
o coração
do tigre

sangra
uma saudade
seca
nas estrelas
apagadas
que habitam
o céu
de minha
boca

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Enigma

Brilha um insulto
no clarão do seu olhar
e sua boca se mantém
           i m ó v e l

O beijo inexistente
abre meu peito
em chagas cobertas
de folhas secas
e vazios

e um ninho de pássaros
brota de minhas costas
pássaros alçam voo
para o céu mais desejado:
o do esquecimento






sábado, 4 de janeiro de 2014

O olho cego da coruja

A coruja
observa
(noturnamente)
a existência
com seu olhar
de lâmina

Tal qual a ave
percebo a vida
no escuro
de dias ensolarados

Porque é na lua
que verte o branco
em prata
que bronzeio
meu coração
farto de dia
vivo de noite